Autor: Ernani Ferrari
A indústria de software no Brasil tem dado diversos sinais de avanço, mas continua imatura em termos mundiais. Empresas brasileiras quase sempre foram formadas exclusivamente por técnicos, já que recursos para investimentos foram historicamente limitados ou inexistentes. Apesar de especialistas em suas áreas de atuação – negócios para a aplicação de software ou a concepção e o desenvolvimento de aplicativos –, na maioria dos casos esses profissionais conduziram suas empresas voltados aos seus clientes e necessidades imediatas, com criatividade e inteligência, mas raramente observando com atenção o que estava acontecendo mundo afora.
A reserva de mercado proporcionou mais espaço para as primeiras empresas, em particular na década de 80. O governo federal, por sua vez, nunca promoveu o desenvolvimento da indústria de software com vigor ou estrutura. O resultado é o quadro que presenciamos hoje, de uma atividade ainda pouco reconhecida no cenário global. A mudança dessa percepção pelos principais consumidores mundiais ainda depende de alterações profundas. Não apenas por meio de ações do governo (que, claro, sempre podem ajudar), e sim pela visão dos empresários e de suas equipes de gestão quanto à qualidade de produtos, serviços e processos. Ainda há a noção deturpada da qualidade como um mal (leia-se gasto) necessário. Ainda se faz alusão a veículos luxuosos em ilustrações para palestras internas dos processos de gestão da qualidade.
Qualidade precisa ser vista com olhos de empreendedor, e não mais de analistas da qualidade. Olhos pelo menos como os dos japoneses, que transformaram seu país, ou como os dos alemães ou americanos, que, com disciplina, conquistaram o mundo, ou os dos próprios chineses, que já entenderam que seu crescimento doravante dependerá de qualidade, e não apenas de custos baixos. Enfim, qualidade tem que ser vista não sozinha, mas como um binômio qualidade-produtividade.
A unidade de medida da qualidade das empresas deveria ser uma unidade monetária em vez dos inúmeros indicadores normalmente encontrados nos sistemas de gestão, como defende Philip Crosby, um dos maiores gurus da área. Na prática, a qualidade não está boa quando os índices de defeitos estão baixos ou as pesquisas de satisfação de clientes apresentam notas acima das metas. A qualidade dos produtos, serviços e processos está boa quando os custos estão baixos, o turnover (rotatividade) da equipe é gerenciado, as vendas estão elevadas e crescentes, os clientes são mantidos e outros são agregados e a gestão de produtos e serviços inova e mantém portfólios que proporcionam rentabilidade elevada.
A mudança passa pelos dirigentes. Isso porque 100% dos problemas de qualidade são motivados pelos gerentes e não pelo pessoal operacional, parafraseando Crosby. Estes, via de regra, não gostam de fazer produtos de baixa qualidade, ter que retrabalhá-los, atuar em processos estressantes ou receber reclamações dos usuários como se incompetentes fossem; no entanto, vivem “segundo o sistema”.
Temos no Brasil, hoje, acesso a todos os recursos disponíveis para a indústria de software mundial – metodologias, técnicas, ferramentas, modelos para aprimoramento de processos, tecnologias, equipamentos e meios de capacitação. Contudo, grande parte das empresas continua com uma visão interiorana, longe do crescimento e do mercado internacional. A consciência da importância da qualidade ainda não se consolidou. Para ilustrar, vale citar que empresas indianas ou americanas tendem a divulgar resultados de uma avaliação CMM/CMM-I somente caso esta aponte níveis 4 ou 5, enquanto no Brasil tenho observado empresas divulgando (ou planejando fazê-lo) ter sido avaliadas como de nível 2. Ora, para quem não está familiarizado com o Capability Maturity Model americano, o nível 2 do CMM representa processos em estágio “repeatable”, nada mais (e dar-me-ei o direito de não traduzir o termo, já que mais de 90% do software do mundo é produzido nos Estados Unidos e 50% do consumo mundial acontece em mercados que falam inglês. é o idioma do software global). Divulgá-lo é atestar um estado aquém do bom para si próprio. Podemos imaginar alguém avaliando o mercado brasileiro e reportando à matriz: “Não há muito a avaliar; aqui crêem ser vantagem alcançar o estágio onde conseguem executar algo da mesma forma pela segunda vez”.
Muitos gestores de empresas de software ainda julgam elevados os custos de ferramentas, metodologias e acesso a recursos de capacitação. Não consideram fatos como o de uma desenvolvedora de aplicativos típica gastar entre 40% e 50% de seus recursos produtivos em retrabalho, de o conserto de um defeito no software liberado para o mercado chegar a custar de 50 a 200 vezes mais que o necessário para identificá-lo e corrigi-lo internamente ou que conquistar um novo cliente custa em média 10 vezes mais que os esforços extras para se manter um existente. Pior, comumente não observam que a globalização trará os concorrentes internacionais para seu mercado e que seus próprios clientes também estão crescendo, demandando uma presença mais atuante e forte de seus parceiros, com fôlego e visão.
Um estudo do MIT (Massachusetts Institute of Technology) divulgado em 2003 apresenta China e Brasil com condições para se tornarem novas potencias do mercado de software mundial. Para terceirização de mão-de-obra, o Brasil também já começa a aparecer no cenário internacional, ainda que atrás de países como índia, Irlanda, Filipinas e Israel. A índia levou mais de 20 anos para chegar onde está, com apoio do governo e esforço da iniciativa privada. O Brasil, por sua vez, conta com o acesso a conhecimento e recursos internacionais que podem rapidamente ser replicados, criatividade, ilhas de expertise já existentes, potencial humano e conhecimento do mundo dos negócios. Alie-se a isto o carisma que vem desenvolvendo no cenário mundial e não tenho dúvidas de que, com conscientização, disciplina e ação, o Brasil será sim uma das potências mundiais do software. O prazo, contudo, depende de nós.
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