O propósito corporativo é um eixo central da gestão de negócios. Sob o dever de respeitar a inteligência de consumidores e colaboradores que exigem coerência entre o discurso e a prática, marcas que ignoram as raízes da própria existência dificilmente conseguem sustentar crescimento ou inspirar confiança.
A constatação foi a peça-chave da roundtable “Propósito que paga dividendos: alinhando causa, cultura e caixa”, que reuniu Camila Kohlrausch, diretora de Marca e Varejo da Calçados Bibi; Roberta Becker, diretora de Marketing e Canais Digitais do Grupo St. Marché; e Rogério Bahia, diretor de Marketing da Alelo, em uma discussão sobre causa, cultura, resultados financeiros e conexão.
Este debate se estrutura em três eixos: o processo de construção do propósito dentro das empresas, o impacto da cultura organizacional na sustentação dessas iniciativas e a tradução dos valores corporativos em resultados concretos, sejam eles financeiros, reputacionais ou sociais.
Da fábrica ao propósito: o caso Bibi
A história da Calçados Bibi ajuda a entender como propósito e cultura podem nascer antes mesmo de virarem palavras de ordem. Fundada há 76 anos, a marca gaúcha surgiu quando ainda não existia um olhar de mercado voltado às necessidades das crianças. “Foi uma marca feita por uma família para outras famílias”, recorda Camila, que além do cargo executivo, pertence à terceira geração familiar à frente do negócio.
A frase que hoje estampa campanhas e guias internos, “fazer o bem, um passinho por vez”, não nasceu de uma consultoria, mas de dentro. “Veio do time, dos franqueados, dos parceiros. Era algo que já estava na cultura, só faltava ser nomeado”, diz Camila.

Na prática, esse propósito se traduz em ações que vão da ergonomia dos calçados ao cuidado com a infância em si. A Bibi evita qualquer estímulo à adultização das crianças, desde a trilha sonora das lojas até a escolha de influenciadores, incentivando crianças a serem crianças.
A coerência, palavra chave para a marca, também se manifesta na relação com fornecedores e trabalhadores locais. Durante as enchentes no Rio Grande do Sul, a empresa antecipou pagamentos a ateliês locais para garantir que todos conseguissem se reerguer. “São famílias produzindo para outras famílias, uma dinâmica compatível com o nosso propósito”, afirma Camila.
O retorno vem em fidelidade e afeto: clientes que guardam o primeiro par dos filhos, histórias que atravessam gerações, sementes literalmente plantadas. Uma das campanhas mais antigas da marca, que incluía uma semente dentro da caixa de sapatos, rendeu à diretora uma lembrança simbólica.
“Uma consumidora mandou a foto do pé de abacate que cresceu daquela semente, vinte anos depois. É o tipo de resultado que não entra no balanço, mas diz tudo sobre quem somos”, reflete a diretora.
Alelo: propósito como infraestrutura da cultura
Na Alelo, o propósito é menos um slogan e mais uma infraestrutura de empresa. O trabalho que levou ao atual posicionamento da marca começou internamente, antes de chegar ao público. “Revisamos nossos pilares de cultura junto com o RH. Propósito não é campanha: é reorganização de valores”, afirma Rogério Bahia.
Dessa revisão nasceu o enunciado que hoje norteia a Alelo: “O essencial da vida é para todos.” A frase guia frentes como alimentação saudável, democratização da cultura e o “aprendedorismo”, um conceito criado pela empresa para falar sobre aprendizado e troca contínua.
Na prática, o propósito se desdobra em decisões que afetam desde o produto até a governança. Nas mãos de mais de 10 milhões de trabalhadores brasileiros, a empresa entende que seus benefícios não são apenas transações financeiras, mas complementos de renda com impacto direto na qualidade de vida dos usuários.
Na ponta operacional, que olha para a planilha de resultados, Bahia reconhece que a métrica do propósito é mais longa que a do funil de vendas. “Não é algo que se mede com cupom ou call to action. É de longo prazo, mas paga dividendos — em engajamento, produtividade e reputação”, pontua.

O ganho é cultural: colaboradores mais motivados, processos mais ágeis e uma marca que hoje é lembrada por sua visão humana, não apenas por seus produtos. “As empresas que não se posicionarem vão desaparecer. Propósito virou uma questão de sobrevivência”, resume.
St. Marché: o propósito que se pratica no caixa
Se o propósito da Alelo nasce da estrutura e o da Bibi da herança familiar, no Grupo St. Marché ele se manifesta na rotina. Diretora de Marketing e Canais Digitais, Roberta Becker descreve o lema da marca como “inovar constantemente a experiência de compra do cliente”.
Mas a inovação, neste caso, não se restringe à tecnologia. Ela se traduz em empatia e responsabilidade. O grupo atua em três territórios — lifestyle, gastronomia e saudabilidade — e faz disso um eixo de impacto. Um exemplo é o programa Arredondar, que direciona centavos das compras a ONGs ligadas à gastronomia e formação profissional de jovens em vulnerabilidade.
Outra frente é a Colheita Solidária, iniciativa que reaproveita frutas e legumes fora do padrão estético e os distribui a creches e escolas por meio do Banco de Alimentos. Desde o início, mais de 175 toneladas de alimentos foram redirecionadas. “Num país que ainda tem fome, desperdício não é detalhe operacional, mas um erro moral”, comenta Roberta.

A marca também firmou uma parceria com a startup Food2Save, que revende produtos próximos ao vencimento com grandes descontos. “É bom para o consumidor, para o varejista e para o planeta. Esse tripé resume o que entendemos por propósito”, explica.
Mais do que reputação, o grupo colhe resultados concretos: mais de 80% das vendas são identificadas e 20% dos clientes respondem por 80% do faturamento. “Lealdade é a métrica do propósito. Quando ele é verdadeiro, o cliente volta não por preço, mas por afinidade”, completa a executiva.
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