O marketing foi uma das primeiras áreas a sentir o impacto direto da inteligência artificial generativa. Textos, imagens, vídeos e roteiros começaram a ser criados por qualquer pessoa com acesso a um chatbot. Mas o uso da IA no marketing vai muito além do que se vê na superfície. Há um universo menos visível — e muito mais transformador — que envolve o uso de dados sintéticos para pesquisa de mercado, desenvolvimento de produto e inteligência competitiva.
Esse é um campo que exige conhecimento técnico e discernimento estratégico. Gerar dados sintéticos não é apertar um botão: é desenhar, com o apoio de IA, simulações estatísticas que representam comportamentos e atributos de uma população. Esses dados não copiam amostras reais; eles emulam padrões e cenários possíveis, preservando correlações e variáveis relevantes. O resultado é um espelho estatístico do mundo real capaz de acelerar descobertas, reduzir custos e mitigar riscos de privacidade.
O potencial é real, mas a euforia pode ser perigosa. Assim como aconteceu com a IA generativa em texto e imagem, há uma corrida nas áreas de marketing por mostrar domínio sobre os dados sintéticos, muitas vezes sem compreender suas limitações e extrapolações. É justamente por isso que o debate sobre eles precisa sair do terreno das promessas e entrar no das aplicações responsáveis e mensuráveis, com cases reais de uso.

Por que discutir isso agora
Os responsáveis pela inteligência de mercado no marketing vivem uma dupla pressão: fazer mais com menos e proteger cada vez mais os dados pessoais. Pesquisas robustas, que antes justificavam orçamentos generosos, tornaram-se caras e lentas demais. Em contrapartida, os ciclos de decisão encolheram e a exigência por eficiência cresceu.
É nesse contexto que os dados sintéticos ganham força. Eles oferecem uma alternativa escalável para criar e testar hipóteses com rapidez e baixo custo, sem abrir mão da qualidade analítica. A Gartner (2025) já coloca o tema entre as principais tendências de Data & Analytics, mas faz um alerta: até 60% dos líderes podem enfrentar falhas críticas de dados sintéticos até 2027 por falta de governança e critérios de validação.
A McKinsey (2025) reforça o movimento, afirmando que até 75% das empresas usarão GenAI para gerar dados sintéticos até 2026, contra menos de 5% em 2023. E a Qualtrics, em um estudo recente, mostra como essa prática vem transformando o privacy-by-design em diferencial competitivo, reduzindo riscos e agilizando decisões.
Os movimentos do mercado também confirmam a tese. A aquisição da startup Gretel pela Nvidia, uma das líderes em infraestrutura de IA, demonstra que a industrialização dos dados sintéticos está em curso. De tendência emergente, passou a ser um vetor estratégico de escala, com aplicações que ainda vão além da pesquisa de mercado e incluem testes de produto, simulações de comportamento de consumo e validações de experiência de cliente (CX).

Aplicação real
Na prática, os dados sintéticos podem ser usados para pré-testes de questionário, de wording e de lógica de pesquisa, seja para validar hipóteses de precificação, comunicação e aderência de ofertas ou para ampliar a representatividade de nichos de difícil acesso, como decisores corporativos de alto ticket ou públicos de regiões pouco amostradas.
Eles também permitem a criação de personas sintéticas, ou “gêmeos digitais” (digital twins), que simulam comportamentos e reações em testes contínuos de mensagens, roteiros de atendimento ou scripts de vendas. Assim, é possível iterar com mais velocidade, testando diferentes caminhos de comunicação sem precisar ir a campo a cada ajuste.
Com isso, o modelo tradicional de pesquisa de mercado começa a ser desafiado. O que antes levava meses entre coleta, análise e validação, pode ser feito em dias. A IA acelera a operacionalidade e reduz custos, mas não elimina o fator humano. É o olhar analítico do pesquisador que garante coerência e validade estatística, distinguindo o insight verdadeiro da alucinação do modelo.

Benefícios, riscos e limites, sem hype!
Os benefícios são claros: velocidade, redução de custo por iteração, cobertura de nichos raros e privacidade nativa. Mas é importante dizer — com a frieza que o tema exige — que os dados sintéticos não são uma solução mágica.
Um dos principais riscos é o chamado model collapse, que ocorre quando modelos treinam em dados sintéticos de forma recorrente, degradando a qualidade das informações. É o equivalente a fazer cópias de cópias — cada vez menos fiéis à realidade. Outro risco é o da excessiva confiança em dados não validados. Sem validação estatística e comparação com amostras reais, as conclusões podem parecer consistentes, mas não se sustentam no campo.
Além disso, “sintético” não significa “anônimo”. Mesmo com a anonimização, há o risco de reidentificação de padrões sensíveis. Por isso, governança é palavra-chave. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) continua sendo o guarda-chuva regulatório, e a Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD) já discute diretrizes específicas para IA e proteção de dados. Isso significa que o uso de dados sintéticos precisa estar sujeito aos mesmos princípios de transparência, responsabilidade e segurança aplicados aos dados reais.
A Gartner também alerta: sem gestão adequada de ciclo de vida, documentação e monitoramento contínuo, o uso de dados sintéticos pode gerar exatamente o oposto do prometido: mais vieses, menos confiança e decisões erradas baseadas em ilusões estatísticas.

Governança, ética e o fator humano
Com todo esse contexto, fica claro que adotar dados sintéticos de forma responsável é o novo diferencial competitivo. Um paper recente da Ipsos reforça isso ao propor um guia de boas práticas e tipologias de uso — especialmente para testes de produto e comunicação. O documento destaca a importância de validar os modelos, documentar a geração de dados e garantir transparência sobre as limitações de cada cenário.
Em empresas brasileiras, como o Grupo Taking, esse movimento começa a ser desenhado. A companhia estuda aplicar o uso de dados sintéticos em sua suíte de inteligência artificial TATe AI, voltada à otimização de processos empresariais e à integração entre áreas de negócio e tecnologia. Ainda em estágio inicial, a iniciativa reflete uma postura que privilegia experimentação responsável, em vez de adoção apressada. O objetivo é claro: entender se o uso de dados sintéticos pode potencializar o desenvolvimento e o buy-in de ofertas junto aos clientes, sem abrir mão da governança e da qualidade.
A grande vantagem desse processo é o aprendizado. Com dados sintéticos, as empresas conseguem iterar mais rápido e aprender continuamente — mas a decisão final ainda depende do discernimento humano. A IA acelera o ciclo de descoberta; o humano continua sendo a parte inteligente da equação.

O que fazer agora
O primeiro passo para usar dados sintéticos é ter clareza de propósito. Antes de gerar qualquer dado, é preciso responder: o que se quer descobrir? Como o resultado será usado? E quais são os limites éticos e estatísticos da simulação?
O segundo passo é planejar a validação. Nenhum dado, real ou sintético, pode sustentar decisões sem uma base estatística sólida. Por isso, o ideal é combinar ambos: usar dados sintéticos para hipóteses e cenários iniciais e confrontá-los com pesquisas reais sempre que possível.
Por fim, é essencial manter transparência e responsabilidade. Sempre que uma pesquisa envolver dados sintéticos, deve haver um disclaimer claro — seja para o público interno ou externo — informando que parte dos resultados foi simulada por IA.
A IA pode trazer velocidade e eficiência, mas não substitui contexto, cultura e criatividade (pelo menos não ainda) — os elementos que realmente diferenciam marcas e posicionamentos. Em um mundo saturado de promessas, quem souber combinar tecnologia com governança e propósito terá vantagem real. Porque o futuro do marketing não é só sobre dados mais rápidos, e sim sobre decisões mais inteligentes.
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